Livro/Catálogo 7o Prêmio Marcantonio Vilaça 2019/20

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Por ocasião do Prêmio Marcantonio Vilaça de 2019/2020, celebramos a publicação de um catálogo geral da obra do ateliê. Segue após o poema de abertura a entrevista concedida ao curador, artista, mestre Bené Fonteles.

Adentro numa Floresta de Arte e Luz por Bené Fonteles

Que artista consegue se recriar e criar um terreiro que é ao mesmo tempo mata dentro de si mesmo e realidade virtuosa num galpão em plena Lapa em São Paulo?
Que poder transmutador tem este artista de quebrar o chão de cimento de uma antiga oficina mecânica e plantar espécies da Mata Atlântica e fazer brotar uma arte híbrida e bio-orgânica?

Para Rodrigo Bueno pintura não é só o pintado, vaza…
É planta e ferro, é corda e vidro, é arte do povo caboclo de todos os terreiros de UmBandaUm num Brasil Brasileiro que ele nos transborda, reconhece o original e decodifica o essencial como nenhum outro, pois é artista e pajé, é pai e mãe de santos Orixás e caboclos de uma floresta singular, inimaginável de existir na Paulicéia cada dia mais desvairada.
Rodrigo é síntese de tudo em sua cozinha farta onde uma grande mesa está a oferecer uma comida também espiritual, onde desce caboclo, onde o oriente dá sentido ao ocidente e somos todos universais. Junto, o altar onde o São Jorge – imagem que pertenceu a Aldemir Martins – reina triunfante contra o dragão da maldade em meio a outras referências e imagens poderosas, icônicas, esfuziantes e luminosas. Por todos os lados as suas pinturas ícones, como se um novo terreiro de umbanda sincrética e artística nos oferecesse uma Fé de Verdade, inquebrantável e infinita, vera pelo que temos de mais universalmente nosso e de generoso a partilhar.
Quem é esse artista que nascido paulista que é mais um fruto antropofágico da Semana de 22? Ele que nos lembra que somos nativos e transatlânticos em meio a uma cidade febril onde tempo é dinheiro?
Mas o xamã Bueno prova que “Tempo é Arte! Arte Cura!”
Rodrigo constrói seu terreiro na aldeia do mágico, onde sua utopia possível pode acontecer e fluir pelo meio transversal da Arte. Mas muito mais do que só por ela. Não fosse o que traz de muitas vidas como sacerdote de um novo culto que a tudo e ao todo compreende, ele ainda pode abarcar o Tao com o poder harmonizador do diverso.
Há em si, uma coragem inspiradora que nos entusiasma, que nos dá o aval do pertencimento ao mistério do Mundo para sermos o que realmente somos e sonhamos. Ele é o sonho e o sonhador posto a prova: Ser é ousar Ser.
Quem é este Ser artista que unindo arte, ciência, espiritualidade numa só Entidade, na Unidade ensina o que é a transcendência com a alegria dos sábios Erês, a bordo de um navio terreiro barroco como a própria natureza com a qual ele é um só?
Rodrigo se recriou em meio a um oásis muito particular e além de um bairro operário dos paulistas mamelucos e migrantes de tantos continentes, compreendeu que eles vieram aqui a trazer muito mais que sua cultura e arte a nos contagiar com pluralidades. Bueno sabe o que é o mestiço e faz da mestiçagem sua linguagem visceral e atávica.
Bueno remixa a língua geral, revira o baú Nheengatu, Caipira, Bantu e Yorubá, raízes que rompem como a flor do concreto colonial para erguer poesia a desafiar os limites da construção da urbe, enquanto extrai belezas dos resíduos, destila delícias e alento de refúgio e (re)encontro.
Rodrigo faz Ebós visuais, Borís herméticos – em que a herança d’África encontra os nativos na missão de reencantamento do mundo na força da arte como cura: Antigas grades tornam-se formas livres a girar como ferramentas de axé, plantas tapeceiras retomam mobílias, cupins corroem o tempo da história da Arte e folhas, cristais, conchas e cabaças são como Oferendas às dinâmicas que fazem o fluir da criação.
Esse artista cidadão em sua narrativa conceitual Mata Adentro, confronta paradigmas artísticos em meio a investigações da arquitetura natural, desdobrando linguagens cenográficas insurgentes e iconografias de amplas latitudes sensoriais.
Bueno tem parentes e similares artistas fundadores de um gestual de raiz como a geometria sagrada de Rubem Valentim, o fundamento de Mestre Didi, e a liberdade aglutinadora de Mestre Gabriel da Casa da Flor. Rodrigo vai de encontro aos Parangolés, Penetráveis e Bólides de Hélio Oiticica, explode as tênues fronteiras entre erudito e popular, convida à imersão, à experiência, o acolhimento, onde os sentidos transcendem o diálogo entre a arte e a loucura, ainda aponta para a intensidade de relações entre a Arte e a Vida.
Rodrigo se interessa em descrever o entorno através das cartografias e mandalas a dialogar como os alquimistas primordiais. Bueno pertence a esta família cósmica que mergulha em criações para viver o voto da impermanência, criou vários mapas para motivar a leitura do que chama cultura em constante movimento, trama sistêmica da arte das ruas, e mais amplamente das premissas da permacultura. As projeções visuais do ateliê Mata Adentro, com prismas expansivos, remetem espontaneamente aos pajés Yanomanis, como portadores de uma dimensão sem igual, ao aspirarem o curare, entram em contato com o espírito dos Xapuris para conhecer o mundo dos sonhos.
Rodrigo é um operário da resiliência da alma sob a cidade fundada pelos jesuítas que tentaram aculturar os chamados indígenas com a famigerada face ocidental civilizatória. O artista é como escavador arqueólogo, a descolonizar os fragmentos das Tabas. Revisita o que ainda vibra no solo onde pisa. Onde as várias nações nativas simplesmente emprestam seus nomes aos logradouros da cidade anônima, testemunha do genocídio, ainda sussurra conhecimento e sentido: Anhangabaú, Ibirapuera, Tietê, Itaquera, Emboaçava, Ipiranga…
Bueno nos vinga ao implantar seu terreiro sincrético na Lapa, ao nos avivar a memória ancestral de que ali é possível a utopia. Descem em seu terreiro muitos oriundos de diversas falanges do Oriente e Ocidente, Ciganos, Pretos Velhos e crianças, enfim uma Fraternidade que reúne desde irmãos Galácticos a índios da aldeia de Iakaloma e Tupinambá. Eles nos orientam a testemunhar que nunca os espíritos nativos hão de abandonar o povo, fazendo até da arte contemporânea, um canal para o Ser da Floresta.
Cumpre-se a profecia do cacique Aimbêre do século XVII que liderou a chamada Confederação dos Tamoios: “Eles nos destruirão. Mas renasceremos no coração do homem branco”. Ele encarna em arte esta profecia que muitos ecologistas e artistas se afinam com a ancestralidade que sustenta o mundo e sonham em evitar A Queda do Céu.*
Rodrigo pinta retratos sobre madeira recuperada, deixando o tom da pele ser o próprio jacarandá, em relação clara de que tal face é vista como uma árvore extraída de seu ambiente natural, subjetivada e escravizadas, que ao serem resgatadas, renascem e retoma sua aura e projeta assim sua personalidade renascida. O artista também pinta sobre antigas fotografias, visões de outras identidades, sublevando-as com pintura corporal, adornos, turbantes e cabeleiras; como personagens a questionar suas origens, recebem a possibilidade conterem fórmulas híbridas de outras faces, como um espectro multidimensional de suas ancestralidades.
Rodrigo faz vivos e fortes alguns retratados que cruzaram de forma cruel o Atlântico no drama da Diáspora Negra. Bueno nos traz encarnados para suas pinturas as entidades magas, em meio a plantas de poder que ele também planta em seu ateliê Mata Adentro. Nele tudo se comunica em pura Unicidade Divina, como em uma engrenagem sistêmica interconectada, como uma floresta-arte política e poética, transcendendo limites e fronteiras a desvendar outras narrativas de mundos.
Suas obras instalações ocupando vários espaços culturais pelo mundo, são ensaios poéticos improvisados escutando a ambiência do lugar para que os materiais digam a ele, as apropriações, o que querem ser e constituir.
Quem é esta entidade chamada Rodrigo Bueno que incorpora tantos seres mestiços e pinta como um expressionista/naturalista viajante cósmico, um caboclo barroco que nos dá poder de unir natureza e cultura de forma tão extraordinária e mística e por isso vai além do que se chama arte?
Rodrigo num hibridismo orgânico, junta mítico e místico num mesmo terreiro que desafia nossa mente formada na fôrma museológica e mercadológica. Rompe o cubo branco com raízes poderosas e atitudes onde antropologia, etnologia, arte e Fé o fazem um ser Renascentista do agora, sob a luz do legado HunderWasser e Oiticica.
Esse artista/entidade que ao nos fazer adentrar heréticos em sua Mata Adentro de ética e poética única, nos insere em um arrojado laboratório de auto-conhecimento, um terreiro onde flui a criatividade, espiritualidade e ancestralidade.
Em meio a floresta possível da PanAmérica de AfroIndígena Utópicas mais possível novo Quilombo de Aimbêre e Zumbi, Rodrigo Bueno nos humaniza e espiritualiza ao nos dar lições preciosas e precisas de arte poética/estética e do poder seminal da transcendência.
Ele, sábio, nos faz brilhar em meio a escuridão urbana que oculta a Alma da Terra Brasileira e canaliza luminosidade para que seja possível a Vida e a Arte, irmanadas a nos redimir, para amar com toda a potência e nos reinventar como projeto humanístico do que é justo e do que é belo.

Bené Fonteles,
Ogã do Terreiro Mata Adentro

*A queda do céu, Palavras de um xamã yanomami, Livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, Editado pela Cia da Letras Copyright © 2010 by Plon. Este livro foi publicado com o apoio do Instituto Socioambiental e do Instituto Arapyaú